RASAL

LINGÜÍSTICA

Recibido: 31.07.2021 | Aceptado: 09.11.2021

DOI: https://doi.org/10.56683/rs222125

ARK: http://id.caicyt.gov.ar/ark:/s26183455/y9au5xujq

Subordinação e nominalização em karitiana (tupi)1

Embedding and nominalization in karitiana (tupi)

Karin Vivanco

Universidade Estadual de Campinas

https://orcid.org/0000-0002-7582-2047

Resumen

As orações subordinadas do karitiana exibem diversas características nominais, como uma série de afixos típicos destes sintagmas. Além disso, elas não dispõem de alguns núcleos funcionais específicos de orações, como tempo e modo (Storto, 1999). A formação de perguntas QU- também revela um comportamento próximo a sintagmas nominais: primeiro, as subordinadas exigem o deslocamento de toda a oração contendo o pronome interrogativo, um padrão tipicamente encontrado em perguntas QU- envolvendo sintagmas nominais; segundo, toda a oração funciona como uma espécie de pronome interrogativo complexo, pois o caso relevante para a construção da pergunta é aquele da oração subordinada e não o do elemento QU-. Contudo, apesar de apresentarem semelhanças com sintagmas nominais, Rocha (2016) questiona uma análise de nominalização por as subordinadas demonstrarem outros comportamentos oracionais, a saber: fenômenos de alteração de valência, núcleos funcionais evidenciais e aspectuais, modificadores adverbiais e certos deslocamentos de constituintes internos. Propomos então uma estrutura sintática que mescle núcleos funcionais de natureza nominal e oracional, seguindo trabalhos da sintaxe gerativa que atribuem comportamentos sintaticamente ambíguos a diferentes combinações de núcleos funcionais (Borsley e Kornfilt, 2000; Baker, 2011; Kornfilt e Whitman, 2011; Alexiadou et al., 2013). Especificamente, as subordinadas do karitiana conteriam a projeção nominal nP acima de uma série de núcleos oracionais/verbais, como AspP, EvidP, VoiceP e vP, e essa estrutura interna mista capturaria concomitantemente suas características nominais e oracionais/verbais.

palavras-chave: subordinação; nominalização; karitiana; Tupi.

Abstract

Subordinate clauses in Karitian exhibit a number of nominal characteristics, such as several affixes typical of noun phrases. In addition, they lack certain clause-specific heads, such as tense and mood (Storto, 1999). The formation of WH- questions also brings embedded clauses closer to noun phrases: first, they require displacement of the whole clause containing the interrogative pronoun, which is similar to the pattern found in questions with noun phrases; secondly, the moved clause behaves as a complex interrogative pronoun, since the question-formation morphology is sensitive to the case of the subordinate clause, not of the WH-element. Nonetheless, in spite of these similarities with nominal phrases, Rocha (2016) has questioned whether nominalization truly accounts for the behavior of subordinate clauses, as they also exhibit many other clause-like features such as valence alternation, evidential and aspectual heads, adverbial modifiers, and internal movement. We then propose a syntactic structure that combines functional heads of both nominal and clausal nature. This proposal is based on analyses within generative syntax which understand syntactically ambiguous patterns as different combinations of functional heads (Borsley & Kornfilt, 2000; Baker, 2011; Kornfilt & Whitman, 2011; Alexiadou et al. 2013). In our analysis, subordinate clauses in Karitiana include a nominal projection nP above several clausal/verbal heads, such as AspP, EvidP, VoiceP and vP. This mixed internal structure would then capture both nominal and clausal/verbal features simultaneously.

keywords: embedding; nominalization; Karitiana; Tupi.

1. Introdução

No estudo de línguas não indoeuropeias, frequentemente nos deparamos com construções que parecem problematizar categorias frequentemente pensadas como universais, como verbos, substantivos e orações. Neste trabalho, discutimos uma destas construções: as orações subordinadas do karitiana, uma língua Tupi da família Arikém falada por cerca de 396 falantes localizados no estado de Rondônia, Brasil (Storto e Rocha, 2018).

No karitiana, as orações subordinadas parecem, à primeira vista, versões mais empobrecidas das orações principais, pois seus verbos apresentam menos afixos que suas contrapartes matrizes (Storto, 1999). Essa propriedade pode ser vista nos exemplos abaixo com o verbo oky:

(1) Karitiana (Storto, 1999, p. 157)
Yn a-ta-oky-j an.
eu 2s-decl-matar/machucar-fut você
‘Eu vou te machucar.”
(2) Karitiana
Ivan Ø-naka-sadn-Ø [Ana ombaky oky].
Ivan 3-decl-contar-nfut Ana onça matar
‘Ivan contou que Ana matou uma onça.”

As subordinadas do karitiana apresentam ainda uma importante diferença em comparação com orações matrizes: elas permitem uma série de morfemas típicos de sintagmas nominais, além de se comportarem de forma análoga a sintagmas nominais na formação de perguntas QU-. Em última análise, isso significa que as orações subordinadas exibem concomitantemente características tipicamente oracionais e nominais, o que dificultaria sua classificação como uma oração ou como um sintagma nominal.

Para dar conta da estrutura e comportamento ambíguos de orações encaixadas, propomos uma estrutura que mescle certos núcleos funcionais de natureza verbal e oracional. Este tipo de estrutura tem sido proposto em trabalhos dentro da sintaxe gerativa para acomodar construções que exibam estruturas pertencentes a mais de uma categoria. Dessa forma, podemos elucidar o comportamento das subordinadas nessa língua sem forçar uma classificação absoluta.

O presente artigo está dividido da seguinte forma. Na seção 2, apresentamos todas as evidências que aproximam as orações subordinadas de sintagmas nominais, a saber: a falta de certos morfemas tipicamente oracionais (seção 2.1), a presença de morfemas tradicionalmente encontrados em sintagmas nominais (seção 2.2) e o comportamento de subordinadas em perguntas QU- (seção 2.3). Apresentamos na seção 3 uma série de propriedades elencadas por Rocha (2016), que reforçaria o estatuto oracional das subordinadas e que as distanciaria de sintagmas nominais. A proposta de uma arquitetura sintática mista está descrita na seção 4.1 e, na seção 4.2, discutimos a questão da negação em ambientes subordinados, concluindo que este não parece ser um teste válido para diagnosticar o estatuto destas construções.

2. Propriedades nominais de orações subordinadas

2.1. Ausência de morfologia tipicamente oracional

As orações subordinadas do Karitiana carecem de vários morfemas presentes em orações matrizes, tal como apontado por Storto (1999). Os exemplos (1) e (2), repetidos aqui como (3) e (4), mostram que uma oração matriz possui morfologia de modo e tempo afixados ao verbo oky, enquanto a subordinada correspondente não exibe estes morfemas:2

(3) Karitiana (Storto, 1999, p. 157)
Yn a-ta-oky-j an
eu 2s-decl-matar/machucar-fut você
‘Eu vou te matar.’
(4) Karitiana
Ivan Ø-naka-sadn-Ø [Ana ombaky oky]
Ivan 3-decl-contar-nfut Ana onça matar
‘O Ivan contou que a Ana matou uma onça.’

Além disso, Storto (1999) também aponta que as orações subordinadas não contêm prefixos de concordância. A concordância é usualmente definida como uma marcação no verbo que varia de acordo com os traços de um sintagma nominal expresso ou subentendido (nulo). Desta forma, uma característica essencial da concordância é referenciar um sintagma nominal presente na mesma oração. Isso pode ser visto no exemplo (3), no qual a concordância de 2ª pessoa a- é controlada pelo sintagma nominal an (a concordância do karitiana se dá com o sujeito transitivo e com o objeto direto, como veremos em 2.3).

Storto (1999) demonstra que, em orações subordinadas, a relação de concordância entre um prefixo verbal e um sintagma nominal não se verifica. Especificamente, a marca de pessoa no verbo encaixado não pode coocorrer com um sintagma nominal livre em (5). A marca de pessoa deve aparecer sozinha em verbos dentro de subordinadas, como y- em (6):

(5) Karitiana (Storto, 1999, p. 123, nota 34, adaptado)
*[Yn y-opiso] a-taka-kãra-t an
eu 1s-ouvir 2s-decl-suspeitar-nfut você
‘(Pretendido) Você achou que eu ouvi.’
(6) Karitiana (Storto 1999, p. 123, nota 34, adaptado)
[Y-opiso] a-taka-kãra-t an
1s-ouvir 2s-decl-suspeitar-nfut você
‘Você achou que eu ouvi.’

Dado que a coocorrência entre a marca de pessoa e um sintagma nominal livre é impossível, Storto afirma então que y- em (6) não seria um prefixo de concordância, mas sim o pronome yn cliticizado. Tal análise se ampara no fato de que esta marca de pessoa está em distribuição complementar com um pronome em sua forma livre. Compare (6) com a sentença abaixo:

(7) Karitiana (Storto, 1999, p. 161)
[yn opiso] a-taka-kãra-t an
eu ouvir 2s-decl-suspeitar-nfut você
‘Você achou que eu ouvi.’

Em resumo, a concordância não seria permitida em orações subordinadas e a única marcação de pessoa tolerada no verbo seria a de um pronome cliticizado.3

2.2 Presença de morfologia tipicamente nominal

Outra característica de orações subordinadas do karitiana é a presença de morfologia tipicamente nominal. Aqui, apresentaremos os seguintes afixos com essa característica: o nominalizador -pa, o oblíquo -ty, a posposição locativa -p e o sufixo -a, um possível cognato do marcador de sintagmas nominais em algumas línguas Tupi (veja Rodrigues, 2013; Queixalós, 2006).

Vejamos primeiro o morfema -pa, que deriva sintagmas nominais instrumentais ou locativos (Storto, 1999; Everett, 2006; Rocha e Vivanco, 2012):

(8) Karitiana (Rocha e Vivanco, 2012)
ambo-pa
subir-nmz
‘escada’
(9) Karitiana (Storto, 1999, p. 52)
kookot-o-pa
passar-epen-nmz
‘ponte’

Este morfema pode sufixar orações subordinadas também e, nestes casos, o significado gerado é o de uma oração relativa como ‘onde/o local em que...’:

(10) Karitiana (Rocha e Vivanco, 2012)
Y-pyr-amynt-yn [cama taso kat-a-pa-]ty
1s-ass-comprar-nfut cama homem dormir-epen-nmz-obl
‘Eu comprei a cama onde o homem dormiu.’

Outro morfema locativo permitido em sintagmas nominais e subordinadas é o sufixo -p. Os exemplos abaixo mostram o -p sufixando um sintagma nominal e uma oração subordinada:

(11) Karitiana (Everett, 2006, p. 306, adaptado)
Yn Ø-naka-m-tat-Ø him pisyp ambi-p
eu 3-decl-caus-ir-nfut carne casa-loc
‘Eu mandei carne para a casa.’
(12) Karitiana (Ferreira, 2017, p. 41)
Antonio, [carro-tyyt y-aki-p] yn a-j̃y-atot-Ø
Antonio carro-com 1s-cop-loc eu 2s-cond-levar-nfut
‘Antônio, se eu estivesse com um carro, eu te levaria.’

No dado em (12), o morfema locativo -p faz parte de uma estrutura condicional (Ferreira, 2017). A oração subordinada sufixada com -p veicula a condição a ser contemplada; o morfema de modo j̃y- aparece na oração matriz.4 Intuitivamente, essa sentença condicional seria algo como ‘Em [se tratando de] p, então q’, no qual p e q seriam duas proposições. O morfema -p na oração subordinada de uma estrutura condicional poderia ser então uma extensão metafórica do locativo -p.

As orações subordinadas também podem ser marcadas com morfemas de caso, como o sufixo de oblíquo -ty. Nos dados abaixo, mostramos este morfema sufixando o sintagma nominal opi em (13) e uma oração subordinada relativa em (14):5

(13) Karitiana (Rocha, 2011, p. 216)
Ø-py-pyting-yn j̃onso opi-ty
3-ass-querer-nfut mulher brinco-obl
‘A mulher quer o brinco.’
(14) Karitiana
Yn Ø-na-aka-t i-pyting-Ø [gijo Luciana ti-tak]-a-ty.
eu 3-decl-cop-nfut nmz-querer-con.cop milho Luciana inv-pilar-epen-obl
‘Eu quero o milho que a Luciana pilou.’

Por fim, o último morfema de natureza nominal que vamos discutir é o sufixo -a. Ele tem sido detectado em diversas línguas Tupi, apresentando diferentes níveis de produtividade (Queixalós, 2006). De forma geral, -a se afixaria a predicados para torná-los argumentos, o que levou Rodrigues (1999) a denominá-lo como um marcador de caso argumental. Na ausência desse morfema, a base funcionaria como um predicado, como se vê no paradigma da língua tapirapé abaixo:

(15) Tapirapé (Leite , 1990, p. 52, adaptado)
xe-hỹj-a
1s-dente-n
‘meu dente’
(16) Tapirapé (Leite, 1990, p. 52, adaptado)
xe-hỹn
1s-dente
‘Eu tenho dente.’

Em algumas línguas Tupi, este morfema parece estar paulatinamente desaparecendo, estando restrito a algumas posições e/ou apenas algumas raízes (Queixalós, 2006). Em karitiana, esse morfema parece ter derivado uma marca de enfático -o, que continua relativamente produtiva na língua.6 Contudo, Vivanco (2018) propõe que o sufixo -a, fossilizado em alguns compostos, seria um cognato do morfema -a das línguas Tupi. Os dados abaixo mostram que é possível em alguns casos específicos replicar o paradigma do tapirapé no karitiana:

(17) Karitiana (Landin, 2005, p. 21, adaptado)
Ombaky ’eem-a
onça preto/sujo-n
‘Irara’
(18) Karitiana (Everett, 2006, p. 309, adaptado)
Ombaky ’eem
onça sujo/preto
‘A onça está suja’ ou ‘A onça é preta.’

Esse sufixo parece estar restrito a algumas raízes apenas, sendo talvez reinterpretado como parte dela.7 Curiosamente, este morfema também aparece em orações subordinadas: 8

(19) Karitiana (Rocha, 2016, p. 125)
Yn Ø-na-oky-t [pikom pykyn-a]
eu 3-decl-matar-nfut macaco correr-n
‘Eu matei o macaco que correu.’
(20) Karitiana (Rocha, 2016, p. 124)
[J̃onso hỹryj-a] Ø-na-aka-t i-se’a-t
mulher cantar-n 3-decl-cop-nfut nmz-bonito-con.cop
‘A mulher que cantou é bonita.’

Este comportamento ecoa em dados de outras línguas Tupi, nas quais o sufixo -atem ou tinha no passado a mesma funcionalidade. Nos dados de tupinambá e apyawã abaixo, este morfema emerge com certas formas nominalizadas de verbos, como o gerúndio:

(21) Tupinambá (Anchieta, 1595 apud Navarro, 2013, p. 3)
iukae’ym-a
não.matar.n
‘Não matando.’
(22) Apyãwa (Praça et al., 2017, p. 53, adaptado)
ie-Ø n=ã-ixãk-i ne=Ø-xe-rakwã-ãw-ã
1s-n não=3.I-ver-neg 2sg.II=r-ref-escorregar-nmz-n9
‘Eu não vi a sua escorregação.’

O sufixo -aparece ser, portanto, outro caso em que um morfema tipicamente atestado em sintagmas nominais aparece em orações.10

2.3. Comportamento de sintagma nominal em perguntas QU

Perguntas QU- são construções que exigem fragmentos de sentença como resposta e que exibem elementos QU- como ‘quem’, ‘o que’, ‘quando’, etc., também conhecidos como pronomes interrogativos. Nestas construções, as orações subordinadas se comportam como sintagmas nominais em dois aspectos. Primeiro, elas não permitem que seus constituintes sejam movidos de forma independente, ou seja, todo o sintagma nominal/oração precisa ser frontalizado quando um de seus constituintes é questionado. Em segundo lugar, o verbo da matriz em uma pergunta QU- se comporta como se a subordinada fosse um sintagma nominal.

Antes de passar aos dados, é preciso apresentar a estrutura de perguntas QU- no karitiana. Como vimos acima, este tipo de pergunta possui um pronome interrogativo, como ‘quem’, ‘o que’, ‘quando’, etc. Em karitiana, ‘quem/o que’ seria traduzido como morã (ou mora) e ‘quando/como’, como tikat. O karitiana é uma língua de QU- movido obrigatoriamente (Landin, 1984), ou seja, o elemento QU- deve obrigatoriamente ser deslocado para a periferia esquerda da sentença. Isso pode ser visto também pela impossibilidade de termos um elemento QU- in situ, isto é, não deslocado para a periferia:11

(23) Karitiana
Mora-mon João ti-’y-t?
qu-cop.int João inv-comer-con.cop
‘O que o João comeu?’
(24) Karitiana
*João ti-’y-t mora-mon?
João inv-comer-con.cop qu-cop.int

A língua possui duas estratégias diferentes para construir perguntas QU- a depender do caso do pronome interrogativo. O karitiana foi descrito como uma língua ergativo-absolutiva por Landin (1984): o sujeito intransitivo se alinharia com o argumento interno de um verbo transitivo e receberia caso absolutivo. O argumento externo de verbos transitivos, em contrapartida, tem caso ergativo. Absolutivo e ergativo não são morfologicamente expressos no karitiana; apenas argumentos oblíquos o são. Este padrão pode ser observado nos dados (25) e (26) abaixo, que contêm respectivamente o verbo transitivo direto oky e o verbo com complemento oblíquo kaj:

(25) Karitiana
Taso Ø-na-oky-t ombaky.
homem 3-decl-matar-nfut onça
‘O homem matou a onça.’
(26) Karitiana (Rocha, 2011)
Yn Ø-na-aka-t i-kaj-Ø an-ty
eu 3-decl-cop-nfut nmz-sonhar-con.cop 2s-obl
‘Eu sonhei com você.’

Em karitiana, esse alinhamento ergativo-absolutivo pode ser detectado através de fenômenos como a concordância, que se dá com o argumento absolutivo (o objeto direto em (27) e o sujeito intransitivo em (28)):

(27) Karitiana (Storto, 1999, p. 157)
Yn a-ta-oky-j an
eu 2s-decl-matar/machucar-fut você
‘Eu vou te machucar.’
(28) Karitiana (Storto, 1999, p. 157)
A-ta-opiso-t an
2s-decl-ouvir-nfut você
‘Você ouviu.’

Perguntas QU- são outro fenômeno que evidencia o alinhamento ergativo-absolutivo da língua, pois essas construções são sensíveis ao caso do pronome interrogativo (Storto, 1999; 2008). Especificamente, o fator relevante é se o elemento QU- é absolutivo ou não. A estratégia menos complexa é com um QU- não absolutivo, podendo ser um sujeito transitivo (que possui caso ergativo), um objeto oblíquo ou um advérbio. Nesse tipo de pergunta, o verbo exibe apenas a concordância no tempo não futuro, que se refere ao elemento absolutivo (o argumento não QU- da oração).

Em (29), por exemplo, o elemento QU- morã é o sintagma nominal ergativo (o sujeito transitivo) e a concordância é feita com a primeira pessoa singular na posição de objeto direto. O dado em (30) possui outro elemento QU- não absolutivo: o argumento oblíquo morã-ty. Verbos com argumentos oblíquos se comportam em karitiana como intransitivos (veja Rocha, 2011); assim, a concordância de andyj é com o sujeito da oração. Por fim, (31) mostra o elemento QU- adverbial tikat e, também neste caso, a concordância se estabelece com o sujeito intransitivo Ivan:

(29) Karitiana (Storto, 2008, p. 192)
Morã y-sokõ’ĩ
qu 1s-amarrar
‘Quem me amarrou?’
(30) Karitiana (Storto, 2008, p. 200)
Morã-ty aj-andyj?
qu-obl 2p-rir
‘De quem vocês riram?
(31) Karitiana
Tihoori i-pytim’adna Ivan?
onde 3-trabalhar Ivan
‘Onde o Ivan trabalha?’

Quando o elemento QU- é absolutivo (isto é, o objeto direto de um verbo transitivo ou o sujeito de um verbo intransitivo), a pergunta tem outra configuração.12 Primeiramente, o elemento QU- é sufixado com o morfema -mon, glosado nos dados como cópula interrogativa. Em segundo lugar, o verbo é prefixado com um nominalizador, cujos alomorfes são i- se o QU- for um sujeito intransitivo ou ti- se ele for um objeto direto. Por fim, o verbo é também sufixado com o morfema -t, chamado de concordância de cópula. O esquema a seguir, baseado no trabalho de Storto (2008; 2010), resume a estrutura de perguntas com pronomes interrogativos absolutivos:

(32) qu-mon (NP) i/ti-V-t/Ø
qu-cop.int nmz-(V)-con.cop

Essa configuração levou Storto (2008; 2010) a afirmar que perguntas com QU- absolutivos envolveriam clivagem. Como se vê no dado abaixo, o verbo amang em uma construção clivada exibe os mesmos morfemas que ocorrem em perguntas QU-:13

(33) Karitiana (Storto, 2008, p. 197, adaptado)
Erery (Ø-na-aka-t) keerep j̃onso ti-amangã-t
algodão 3-decl-cop-nfut antigamente mulher inv.nmz-plantar-con.cop
‘Era algodão que as mulheres plantaram antigamente.’

Duas perguntas com QU- absolutivos estão reproduzidas nos exemplos (34) e (35). Os pronomes interrogativos são um sujeito intransitivo em (34) e um objeto direto em (35). Os morfemas descritos em (32) estão presentes nos verbos hyryp e opĩ:

(34) Karitiana (Storto, 2008, p. 199, adaptado)
Mora-mon i-hyryp-Ø?
qu-cop.int nmz-chorar-con.cop
‘Quem chorou?’
(35) Karitiana (Storto, 2008, p. 199, adaptado)
Mora-mon an ti-opĩ-t?
qu-cop.int você inv-cortou-con.cop
‘O que você cortou?’

Passemos agora às perguntas com orações subordinadas. Nas chamadas perguntas QU- de longa-distância, o pronome interrogativo é um constituinte da oração subordinada. Como vimos anteriormente, o elemento QU- precisa ser obrigatoriamente deslocado para a posição inicial em karitiana. Contudo, quando ele é constituinte de uma oração subordinada, toda essa subordinada se desloca para o início da sentença. Assim, em (37), o elemento QU- morã (o objeto direto do verbo subordinado ko) ‘arrasta’ toda a oração subordinada entre colchetes para a periferia esquerda da sentença:

(36) Karitiana
Ivan Ø-naka-sadn-Ø [Ana ombaky oky]
Ivan 3-decl-contar-nfut Ana onça matar
‘O Ivan contou que a Ana matou uma onça.’
(37) Karitiana
[Morã Karin ti-ko]-mon João ti-sadnan-Ø?
qu Karin inv-quebrar-cop.int João inv-contar-con.cop
‘O que o João contou que a Karin quebrou?’

Esta operação não está restrita a orações subordinadas na posição de complemento direto como (37). Os dados abaixo mostram que ela também ocorre quando a subordinada é um complemento oblíquo (38-39) ou uma oração adverbial (40-41):14

(38) Karitiana
Karin Ø-na-aka-t i-koro’op kãra-t [Ana médico mĩ]-ty.
Karin 3-decl-cop-nfut nmz-dentro suspeitar-con.cop Ana médico bater-obl
‘A Karin acha que a Ana bateu em um médico.’
(39) Karitiana
[Morã Ana oky]-ty i-kãra Karin?
qu Ana matar-obl 3-suspeitar Karin
‘O que a Karin acha que a Ana matou?’
(Literalmente: ‘[O que a Ana matou] acha a Karin?’)
(40) Karitiana (Rocha, 2016, p. 145)
[ambi-sok j̃onso otam byyk-Ø] Ø-na-oky-t him taso
casa-em mulher chegar perf-advz 3-decl-matar-nfut caça homem
‘Depois que a mulher chegou em casa, o homem matou a caça.’
(41) Karitiana
[Morã Thiago by-hip byyk] i-pa’ira Luciana?
qu Thiago caus-cozinhar perf 3-ficar.brava Luciana
‘Luciana ficou brava depois que o Thiago cozinhou o quê?’
(Literalmente: ‘[Depois que o Thiago cozinhou o quê] a Luciana ficou brava?’)

Esta frontalização da subordinada inteira é obrigatória, visto que perguntas de longa distância sem essa operação são marginais/degradadas. Os exemplos abaixo apresentam as contrapartes dos dados em (37) e (39) sem movimento da subordinada, apenas com o movimento do elemento QU-:15

(42) Karitiana
*Morã João ti-sadnan-Ø [Karin ti-ko]-mon?
qu João inv-contar-con.cop Karin inv-quebrar-cop.int.
‘(Pretendido) O que o João contou que a Karin quebrou?’
(43) Karitiana
*Morã i-kãra Karin [Ana mĩ]-ty?
qu 3-suspeitar Karin Ana bater-obl
‘(Pretendido) Em quem a Karin acha que a Ana bateu?’

Na linguística gerativa, esse fenômeno sintático é chamado de pied-piping (Ross, 1967; Heck, 2008; 2009; Horvath, 2006; Cable, 2010; 2012; 2013). O pied-piping pode ser definido como uma operação na qual elementos adicionais se movem em conjunto com o pronome interrogativo, que seria o gatilho original deste movimento (Horvath, 2006). Em português, ele pode ser encontrado em perguntas QU- com sintagmas preposicionados, nas quais a preposição se move em conjunto com o pronome interrogativo:

(44) [De quem]i o João tem medo ti?

O pied-piping também é obrigatório com sintagmas nominais em karitiana. O dado abaixo demonstra que um elemento QU- na posição de possuidor também força o deslocamento de todo o sintagma nominal que o contém: em (45), todo o sintagma nominal ‘[a mandioca de quem]’ precisa ser frontalizado. A ausência de pied-piping do sintagma nominal é agramatical, como se vê em (46):

(45) Karitiana
[Morã gok]-o-mon Ivan ti-’y-t?
qu mandioca-epen-cop.int Ivan inv-comer-con.cop
‘A mandioca de quem o Ivan comeu?’
(46) Karitiana
*Morãi-mon Ivan ti-’y-t [ti gok]?
qu-cop.int Ivan inv-comer-con.cop mandioca

Isso mostra que, com relação ao movimento de seus constituintes, orações subordinadas são tão refratárias à extração de seus elementos internos como sintagmas nominais.16

Outra similaridade entre orações subordinadas e sintagmas nominais são os morfemas de caso. Vimos na seção 2.2 que subordinadas podem ter marcação de caso, como o oblíquo -ty, à semelhança do que ocorre em sintagmas nominais (veja dados em (13) e (14)). Em perguntas QU- simples, vimos anteriormente que a estratégia a ser empregada (isto é, se clivada ou não) depende do caso do elemento QU-. Contudo, em perguntas de longa distância, o caso relevante para o tipo de estratégia a ser empregado é o da subordinada, e não do elemento QU-. Isso pode ser visto na pergunta de longa distância em (47), em comparação com as perguntas simples com um QU- não absolutivo (48) e absolutivo (49). Na pergunta em (47), o elemento QU- morã tem caso absolutivo, pois é um objeto direto do verbo byhip; já a oração subordinada é um modificador adverbial do verbo pa’ira. Crucialmente, a estratégia empregada no verbo matriz para construir a pergunta é similar àquela usada para elementos QU- adverbiais, como tikat em (48). A estratégia clivada (ilustrada aqui por (49)) não é utilizada na pergunta de longa distância em (47), mesmo morã sendo um argumento absolutivo:

(47) Karitiana
[Morã Thiago by-hip byyk] i-pa’ira Luciana?
qu Thiago caus-cozinhar perf.asp 3-ficar.brava Luciana
‘Luciana ficou brava depois que o Thiago cozinhou o quê?’
(Literalmente: ‘[Depois que o Thiago cozinhou o quê] a Luciana ficou brava?’)
(48) Karitiana
Tikat i-harãxa aka gooj-o Ana?
como 3-consertar cop carro-epen Ana?
‘Como a Ana consertou o carro?’
(49) Karitiana (Storto 2008: 199, adaptado)
Mora-mon an ti-opĩ-t?
qu-cop.int você inv-cortou-con.cop
‘O que você cortou?’

Em outras palavras, o verbo da oração matriz ignora o caso do elemento QU- em perguntas de longa-distância, sendo sensível apenas à função sintática que a oração subordinada desempenha. Dados de perguntas de longa-distância como (47) parecem revelar que a língua trata a subordinada inteira como uma espécie de pronome interrogativo complexo. Isto, por sua vez, demonstraria mais uma vez como as orações subordinadas do karitiana se comportariam como sintagmas nominais.

3. Propriedades oracionais das subordinadas

Nas seções anteriores, discutimos comportamentos que aproximariam orações subordinadas de sintagmas nominais. Contudo, Rocha (2016) demonstra que elas ainda mantêm certas características de orações, como fenômenos de alteração de valência, certos núcleos verbais e advérbios. Estes fenômenos serão detalhadamente explorados a seguir.

O verbo dentro de uma oração subordinada retém toda sua grade argumental, pois os mesmos argumentos de sua contraparte na matriz podem ser expressos em orações encaixadas. Os dados em (50) e (51) mostram o verbo opĩ em uma oração matriz e subordinada e ilustram a estrutura argumental idêntica nos dois ambientes:17

(50) Karitiana
Yn Ø-na-opĩ-t him
eu 3-decl-cortar-nfut carne
‘Eu cortei a carne.’
(51) Karitiana (Storto, 2012, p. 229)
Yn Ø-na-aka-t i-sondyp-Ø [Inácio ’ep opĩ]-ty
eu 3-decl-cop-nfutnmz-saber-con.cop Inácio árvore cortar-obl
‘Eu sei que o Inácio corta a árvore.’

É possível também que os argumentos em subordinadas preservem a marcação de caso da matriz, embora isso seja bem menos óbvio. Como vimos anteriormente, o alinhamento ergativo-absolutivo pode ser detectado em karitiana através da concordância verbal e da formação de perguntas QU- (veja a seção 2.3). Além disso, a seção 2.1 demonstra que a concordância verbal não é permitida em orações subordinadas, mas que a cliticização de pronomes é possível nestes ambientes. Essa cliticização parece, crucialmente, ocorrer apenas com elemento absolutivos: em (52), o sujeito intransitivo de 1ª pessoa plural inclusiva é cliticizado como yj-;18 (53) mostra o pronome cliticizado de 1ª pessoa plural exclusiva yta-, que seria o objeto direto do verbo transitivo m-pypyyt:

   
(52) Karitiana (Storto, s.d., “Ritos fúnebres”)
[Yj-kĩkin byyk], Ø-na-pyn-hot-Ø y-’et-e-’et’ej-e-kyn.
1pl.incl-chorar perf 3-decl-deon-ir-nfut1s-filho-epen-filho túmulo-epen-para
‘Depois de nós chorarmos, tem que ir pro túmulo, meu neto.’
(53) Karitiana (Storto, s.d, “Ritos fúnebres”)
[A-ty an yta-m-pypyyt-y]-ty yta-pyting yta, y-timoj̃
isso-obl você 1pl.excl-caus-saber-epen-obl 1pl.excl-querer 1pl.excl 1s-tia.avó
‘Nós queremos que você nos explique sobre isso, tia avó.’
(Literalmente: ‘Nós queremos que você nos faça saber sobre isso, tia avó.’)

Este padrão de cliticização de argumentos absolutivos poderia ser uma evidência de que a marcação de caso absolutivo-ergativa também é conservada em orações subordinadas, embora isso precise ser mais bem investigado.

O dado em (53), com o verbo pypyyt causativizado com o morfema -m-, também mostra que fenômenos de alteração da valência verbal são possíveis em orações subordinadas. Rocha (2016) demonstra que verbos em orações encaixadas podem ser passivizados e causativizados de forma idêntica à oração matriz (veja também Everett, 2006). Na causativização, sinalizada em Karitiana pelo morfema -m-/by-,19 um argumento interno é acrescentado a um verbo intransitivo, tornando-o transitivo (Landin, 1984; Storto, 1999; Everett, 2006; Storto e Rocha, 2014; Rocha, 2016, 2011). O dado em (54b) ilustra o incremento de valência na oração matriz, enquanto (55b) comprova a existência desse fenômeno em ambientes subordinados:

(54) Karitiana (Rocha, 2011, pp. 61 e 214)
a. Atykiri Ø-na-otam-Ø João
então 3-decl-chegar-nfut João
‘Então o João chegou.’
b. Ø-pyry-mb-otam-yn João taso
3-ass-caus-chegar-nfut.ass João homem
‘O homem fez João chegar.’
(55) Karitiana (Rocha, 2016, p. 126, adaptado)
a. [j̃onso otam tyka]-t Ø-na-oky-t him taso
mulher chegar imperf-advzr 3-decl-matar-nfut caça homem
‘Enquanto a mulher estava chegando em casa, o homem matou a caça.’
b. [j̃onso yn mb-otam tyka]-t Ø-na-oky-t himtaso
mulher eu caus-chegar imperf-advzr 3-decl-matar-nfut caça homem
‘Enquanto a mulher estava me fazendo chegar em casa, o homem matou a caça.’

A passivização é outro fenômeno de alteração de valência encontrado em orações subordinadas. Em karitiana, o morfema de voz passiva só é possível com verbos transitivos (ou verbos transitivizados com -m- , como demonstrou Rocha, 2011). Nas sentenças abaixo, o morfema de passiva -a- no verbo -’y pode ser encontrado tanto em orações matrizes como (56b) quanto na subordinada em (57):

(56) Karitiana (Rocha, 2011, pp. 95-96)
a. Ø-pyry-’y-dn taso ti’y
3-ass-comer-nfut homem comida
‘O homem comeu a comida.’
b. Ø-pyr-a-’y-dn ti’y
3-ass-pass-comer-nfut comida
‘Comeram a comida/a comida foi comida.’
(57) Karitiana (Rocha, 2016, p. 127)
Yn Ø-na-otet-Ø [’ip a-’y]
eu 3-decl-cozinhar-nfut peixe pass-comer
‘Eu cozinhei o peixe que foi comido.’

Além de fenômenos de alteração de valência, Rocha (2016) também pontua que certos núcleos funcionais tipicamente oracionais, como aspecto e evidenciais, também permanecem em orações subordinadas. Os pares de exemplos em (58-59) e (60-61) mostram o auxiliar aspectual imperfectivo tyka e o evidencial indireto saryt em orações matrizes e subordinadas:

(58) Karitiana (Storto, 2002, p. 160, adaptado)
a-ohen i-’ot-Ø tyka-t, õẽ
2s-anel.peniano nmz-cair-con.cop imperf-con.cop querido
‘Seu anel peniano está caindo, meu querido (amigo).’
(59) Karitiana (Rocha, 2016, p. 13)
[Gok j̃onso amangã tyka]-t Ø-na-oky-t him taso
mandioca mulher plantar imperf-advzr 3-decl-matar-nfut caça homem
‘Enquanto a mulher estava plantando mandioca, o homem matou a caça.’
(60) Karitiana
Taso Ø-na-oky-j saryr-i boroja
homem 3-decl-matar-fut evid.ind-fut cobra
‘(Diz que) o homem vai matar a cobra.’
(61) Karitiana
Ø-pyry-hadn-an José [carro-ty Pedro amy saryt]-y-ty
3-ass-dizer-nfut José carro-obl Pedro comprar evid.ind-obl
‘José disse que (diz que) o Pedro comprou um carro.’

Outro fenômeno apresentado por Rocha (2016) é a presença de advérbios em orações subordinadas (veja também Storto, 1999). Abaixo, mostramos que esses modificadores tipicamente oracionais são permitidos em orações subordinadas completivas (exemplo 62), orações subordinadas relativas (63) e orações subordinadas adverbiais (64):

(62) Karitiana (Storto, 1999, p. 130)
Y-py-so’oot-on yn [mynda sosy ajxa ti-oky]-ty
1s-ass-ver-nfut eu lentamente tatu vocês inv-matar-obl
‘Eu vi vocês matarem o tatu lentamente.’
(63) Karitiana
Karin Ø-na-aka-t i-engy-t [kootsyke Ivan ti-m-’a]-ty.
Karin 3-decl-cop-nfut nmz-vomitar-nfut ontem mingau Ivan inv-caus-fazer-obl
‘Karin vomitou o mingau que o Ivan fez ontem.”
(64) Karitiana (Rocha, 2016, p. 156)
[mynda Milena ’ip byhip tyki’oo]-t Ø-na-oky-t ombaky João
lentamente Milena peixe assar imperf.prog-advz 3-decl-matar-nfut onça João
“Enquanto a Milena estava cozinhando o peixe lentamente, o João matou a onça.”

Finalmente, subordinadas exibiriam ainda outro fenômeno bastante típico de orações: o movimento interno. Orações permitem que seus constituintes se movam internamente, o que contrastaria com a relativa inflexibilidade de sintagmas nominais nas línguas do mundo. Ross (1972), por exemplo, afirma que substantivos exibem certa ‘inércia sintática’ (veja seção 4.1). Isso já foi discutido anteriormente para os sintagmas nominais do karitiana: os dados em (45) e (46) mostram que os constituintes de um sintagma nominal não podem se mover de forma independente para a periferia da oração. Vimos na seção 2.3 que, nesse aspecto, subordinadas se alinham a sintagmas nominais, pois seus constituintes também não podem se mover de forma independente.

Contudo, embora as subordinadas não permitam que seus constituintes se movam para fora dela, eles podem se mover internamente. Esse fenômeno pode ser visto nos dados abaixo, com a anáfora ta- em orações subordinadas relativas. A anáfora ta- deve ser c-comandada por seu antecedente e, por conta disso, anáforas são tipicamente encontradas na posição de objeto (Storto, 2007; Storto e Vivanco, 2021):

(65) Karitiana (Storto, 2007, p. 3)
Tasoi Ø-na-oky-t tai-ota
homem 3-decl-matar-nfut 3anaf-amigo
‘O homem matou seu próprio amigo.’

Storto (2007) e Storto e Vivanco (2021) mostram que a anáfora só é permitida em uma posição estrutural acima de seu antecedente se esta posição for atingida através de movimento sintático. Em subordinadas relativas como (66a), o sintagma nominal pivô ta-gooj é gerado como objeto do verbo hãraxa, mas se move para a periferia esquerda da oração. Crucialmente, ta- é permitido nestes casos, evidenciando sua posição estrutural abaixo do sujeito João antes do movimento:

(66) Karitiana
a. Yn Ø-naka-kot-Ø tai-gooj Joãoi ti-hãraxa
eu 3-decl-estilhaçar-nfut 3anaf-canoa João inv-consertar
‘Eu estilhacei sua própria canoa que o João consertou.’
b. ...[ ta-gooji [João ti ti-hãraxa]]

Este movimento interno de ta-gooj demonstra que as subordinadas não são tão inertes quanto poderíamos imaginar, pois o deslocamento interno dos argumentos é permitido. Neste aspecto, elas se distanciam de sintagmas nominais, cujos elementos internos são mais imóveis, e se aproximam de orações matrizes, cujos constituintes exibem maior mobilidade.

Ao contrário das propriedades vistas na seção 2, os fenômenos elencados nesta seção ilustram características de subordinadas similares a orações matrizes. A conclusão de Rocha (2016) é então que, apesar de serem não finitas, as orações encaixadas não seriam construções nominalizadas. Elas seriam então orações truncadas, com menos núcleos funcionais (seguindo a proposta de Storto, 1999).

Embora essa posição possa capturar adequadamente as propriedades oracionais das subordinadas, existe ainda a questão de como explicar as diversas propriedades nominais dessas construções expostas na seção 2. As orações subordinadas apresentam propriedades mistas, porque exibem concomitantemente comportamentos de orações e de sintagma nominais. Na próxima seção, apresentaremos uma visão de nominalização que seria capaz de explicar esse estatuto ambíguo das subordinadas no karitiana.

4. Subordinadas como estruturas nominalizadas

4.1. Proposta

A linguística frequentemente se depara com construções que não parecem pertencer a uma ou outra categoria previamente estabelecida.20 Este é o caso das subordinadas no karitiana, que apresentam tanto propriedades de sintagmas nominais (os morfemas -ty, -pa, -p e -ae o comportamento em perguntas QU-) quanto de orações (estrutura argumental, mudança de valência, núcleos funcionais tipicamente oracionais, advérbios, e movimento sintático interno). Este fato não é exclusivo do karitiana, pois muitas línguas possuem construções que manifestam simultaneamente características oracionais/verbais e nominais. A título de ilustração, apresentamos abaixo o caso de infinitivos (67) e gerúndios (68) em línguas germânicas (Alexiadou et al., 2013). No chamado infinitivo verbal em alemão, o verbo pode aparecer com determinantes definidos — uma característica típica de sintagmas nominais. Em (67), o infinitivo Singen permite o determinante das. No entanto, o argumento interno die Marseillaise emerge sem preposição e com caso acusativo, um padrão semelhante ao encontrado quando o verbo Singen está flexionado.21

(67) Alemão (Alexiadou et al., 2013, p. 32, adaptado)
Das die Marseillaise Singen
o a.acc Marseillaise cantar.inf
‘O cantar da Marseillaise.’

No chamado gerúndio nominal do inglês em (68), a estrutura argumental do verbo permanece intacta, o que aproximaria estas construções de sintagmas verbais ou orações. O padrão de marcação de caso, no entanto, é modificado, pois o argumento externo aparece como um genitivo (John’s) e o argumento interno é introduzido pela preposição of. Neste caso, a única modificação possível é a adjetival, como prompt na sentença abaixo:

(68) Inglês (Alexiadou et al. 2013, p. 28)
John’s prompt answering of the question.
‘A rápida resposta à questão pelo João.’

Além da marcação de caso, outros fenômenos de estrutura argumental atestam o estatuto ambíguo de certas construções. Vimos na seção 3 que mudanças na valência verbal são geralmente entendidas como uma característica oracional. Contudo, no turco, as nominalizações podem aparecer em uma forma ativa (69a) ou passiva (69b):

(69) Turco (Comrie e Thompson, 2007, p. 350)
a. Hasan-ın mektub-u yaz-ma-sı
Hasan-gen carta-acc escrever-vn-dele
‘A escrita de Hasan da carta.’
b. Mektub-un (Hasan tarafindan) yaz-ıl-ma-sı
carta-gen Hasan por escrever-pass-vn-dele
‘A carta sendo escrita (por Hasan).’

Além disso, distinções aspectuais, frequentemente consideradas uma propriedade apenas de orações, são permitidas em nominalizações do polonês. Os dados em (70a) e (70b) demonstram essa diferença aspectual com o verbo ‘ler’:

(70) Polonês (Comrie e Thompson, 2007, p. 348)22
a. Czytanie tej książki dało dużo radości
‘O [processo de] ler aquele livro me deu muito prazer.’
b. Przeczytanie tej książki dało dużo radości
‘[A totalidade do ato de] ler aquele livro me deu muito prazer.’

As construções descritas acima ilustram o problema teórico de estabelecer as propriedades características e definidoras de categorias como sintagmas nominais e orações. Existem propostas que assumem a existência de um continuum, que iria de construções mais verbais a outras mais nominais (Ross, 1972; 2004). Nesse caso, construções com propriedades mistas poderiam se localizar no meio do continuum, o que capturaria seu comportamento ambíguo.

Outra possibilidade é de considerar que construções com propriedades mistas apresentam uma estrutura sintática que mesclaria núcleos funcionais tipicamente oracionais/verbais e outros de natureza nominal (Borsley e Kornfilt, 2000; Baker, 2011; Alexiadou et al., 2013; Kornfilt e Whitman, 2011). Elas seriam o que na linguística formal se tem denominado de projeções estendidas mistas, ou seja, ‘uma estrutura na qual um verbo está associado a uma ou mais categorias nominais’ (Borsley e Kornfilt, 2000). Assim, diferentes combinações de núcleos funcionais gerariam os diversos tipos de nominalização atestados nas línguas do mundo. Para ilustrar essa proposta, vejamos o trabalho de Alexiadou et al. (2013). Nele, os núcleos T (tense) e Asp (aspect) seriam tipicamente encontrados em nominalizações com informações de tempo e aspecto,23 enquanto outras nominalizações teriam núcleos funcionais diferentes, como Number (número singular ou plural) e nP.

Os autores diferem sobre quais são núcleos relevantes nestas projeções mistas (veja Baker, 2011; Kornfilt e Whitman, 2011; Alexiadou et al., 2013) e também sobre a posição exata em que eles se localizariam (Kornfilt e Whitman, 2011). Assim, ao invés de estabelecer a priori quais seriam os núcleos encontrados nas orações subordinadas do karitiana, vamos considerar aqui para quais núcleos funcionais temos evidência morfológica. A partir disso, poderemos construir uma estrutura sintática mista que representaria com exatidão o esqueleto das subordinadas do karitiana. Até o momento, temos evidência para os seguintes núcleos funcionais:

  • n
- Projeção: nP
- Dados que comprovam sua existência: nominalizador -pa em (10), posposição locativa -p em (12), o morfema de caso oblíquo -ty em (14) e o sufixo -a em (19-20)
  • Asp
- Projeção: AspP
- Dados que comprovam sua existência: aspecto imperfectivo tyka em (59)
  • Evid
- Projeção: EvidP
- Dados que comprovam sua existência: evidencial indireto saryt em (61)
  • Voice e v
- Projeção: VoiceP e vP
- Dados que comprovam sua existência: causativizador -m- em (55b) e passivizador -a- em (57)

Sendo assim, assumimos que a estrutura das subordinadas (com um verbo transitivo) seria a seguinte:

(71)

A estrutura do karitiana em (71) tem características da nominalização de vP proposta por Kornfilt e Whitman (2011), como a presença de um núcleo nominal (n) acima do sintagma verbal. Além disso, ela também apresenta semelhanças com algumas estruturas de infinitivos e gerúndios verbais discutidos por Alexiadou et al. (2013), que contêm núcleos como Asp e Voice. Todas essas construções seriam não finitas,24 o que ressoaria na ideia central do trabalho de Rocha (2016). Além disso, em comparação às orações matrizes, que teriam mais núcleos funcionais (por exemplo, T), a estrutura em (71) formaliza a ideia de Storto (1999) de que as subordinadas são orações truncadas.

A árvore em (71) é capaz de explicar tanto os comportamentos nominais quanto oracionais das subordinadas do karitiana vistos nas seções anteriores. A ausência de morfologia tipicamente oracional se dá porque as subordinadas não possuiriam estes núcleos funcionais (a saber, T e Mood).25 Além disso, todos os fenômenos de mudança de valência seriam mantidos, dado que o sintagma verbal encontra-se integralmente preservado em (71). Essa estrutura permite ainda que advérbios estejam presentes, pois, abaixo do núcleo VoiceP, toda a estrutura oracional se encontra preservada, podendo então acomodar adjuntos como sintagmas adverbiais.

A morfologia tipicamente nominal estaria ligada à presença de nP acima do sintagma verbal. O núcleo n seria manifesto pelos morfemas -pa e o -a, quando estes estão presentes. Nos casos em que a subordinada ocupa uma posição de oblíquo ou de locativo, os morfemas -ty e -p também poderiam estar presentes, pois, em sua projeção mais externa nP, as subordinadas seriam idênticas a sintagmas nominais.26

Por fim, o pied-piping, que ocorre tanto com sintagmas nominais quanto com orações subordinadas, pode ser explicado por uma restrição proposta por Ross (1967). Ela é denominada de Restrição de NPs complexos (Complex NP Constraint) e proibiria o movimento de constituintes para fora de um sintagma nominal complexo:

(72) Restrição de NPs complexos
Nenhum elemento contido em uma sentença dominada por um sintagma nominal pode ser movido para fora daquele sintagma nominal por uma transformação. (Ross, 1967) [tradução nossa]

Essa restrição pode ser representada pelo seguinte esquema, no qual um elemento ocupando a posição B não pode se mover da posição B dentro de um sintagma nominal (NP) para a posição A:

(73) *A ... [NP N ... B ... ]

Para exemplificar a restrição em (72), veja que não é permitido o movimento do constituinte the hat para fora do sintagma nominal complexo the claim...:

(74) Inglês (Ross, 1967, p. 126)
*The hati [which I believed [NP the claim that Otto was wearing ti]] ti] is red

Finalmente, a estrutura em (71) também acomoda o movimento interno visto nos dados de anáfora em (66a). Como discutimos na seção 3, o principal problema de movimentos sintáticos dentro de um sintagma nominal (e, por extensão, dentro de nominalizações) é que sintagmas nominais parecem ser elementos mais inertes, ou seja, eles não têm a flexibilidade interna tipicamente encontrada em orações. Ross (1972), por exemplo, discute o processo de alçamento (raising), no qual o sujeito de uma oração subordinada se torna um constituinte da oração matriz através de movimento (no caso dos exemplos abaixo, ele se torna o sujeito). O alçamento é possível com verbos, mas, de forma geral, não ocorre com substantivos. Os dados em (75-76) ilustram esse contraste: o sujeito do verbo seem pode ser derivado através de movimento, mas o movimento de the shit para a posição de genitivo de likelihood gera uma sentença muito mais marginal:

(75) Inglês (Ross ,1972, p. 321)
Oliveri seems to ti like walnuts.
‘Oliver parece gostar de nozes.’
(76) Inglês (Ross, 1972, p. 322)
?The shiti’s likelihood of ti hitting the fan.

No entanto, algumas construções nominalizadas nas línguas do mundo parecem permitir que certos processos sintáticos tenham seus elementos internos como alvo. Kornfilt e Whitman (2011), por exemplo, apresentam o fenômeno de afixação suspensa em turco, no qual um determinado sufixo comum a dois elementos de uma coordenação pode ser parcialmente ‘suspenso’, ou seja, pode ser expresso apenas no último elemento. Na coordenação abaixo, o sufixo plural -lar pode ocorrer apenas no último elemento da coordenação:

(77) Turco (Kornfilt e Whitman, 2011, p. 1305)
limon ve portakal-lar
limão e laranja-pl
‘limões e laranjas’

Este processo sintático ocorre com diversos sufixos, como o nominalizador não factivo -ma, que, no exemplo abaixo, pode ser suspenso no primeiro sintagma verbal da coordenação (‘assar o pato’) e aparecer apenas em ‘congelar o creme’:

(78) Turco (Kornfilt e Whitman, 2011, p. 1305)
Ali-nin ördeğ-i kızar-t-ıp krema-yı don-dur-ma-sın-ı
Ali-gen pato-acc assar-caus-ecreme-acc congelar-caus-nfnom-3.sg-acc
söyle-di-m.
contar-pst-1s
‘Eu disse pra Ali assar o pato e congelar o creme.’

A afixação suspensa em (78) contrasta com nominalizações lexicais, que se mostram inertes para o processo sintático da afixação suspensa. As nominalizações lexicais criariam uma nova palavra no léxico e é comum que seu significado não seja composicional. É o caso dos dados abaixo, formados com o sufixo resultativo -ma (homófono ao de nominalização em 78).

(79) Turco (Kornfilt e Whitman, 2011, p. 1305)
don-dur-ma
congelar-caus-result
‘Sorvete’
(80) Turco (Kornfilt e Whitman, 2011, p. 1306)
kızar-t-ma
assar-caus-result
‘comida frita/assada’

A suspensão de afixos não ocorre com essas nominalizações lexicais, como se vê pela impossibilidade de interpretar o dado abaixo como ‘sorvete e carne assada’:

(81) Turco (Kornfilt e Whitman, 2011, p. 1306, adaptado)
don-dur-up kızar-t-ma
congelar-caus-e assar-caus-result
#‘Sorvete e carne assada’

Entretanto, quando se trata de uma nominalização não lexical com o sufixo de nominalização -ma, a afixação suspensa pode ocorrer normalmente, algo já visto no exemplo (78) e ilustrado aqui com um dado bastante similar a (81):

(82) Turco (Kornfilt e Whitman, 2011, p. 1306, adaptado)
don-dur-up kızar-t-ma
congelar--caus-e assar--caus-subj
‘Congelar e assar’

O que o fenômeno da afixação em turco parece mostrar é que certas nominalizações (não lexicais/sintaticamente derivadas) permitem que seus constituintes internos estejam visíveis e sejam acessados por certos processos sintáticos. Dentro dessa perspectiva, o fato de as subordinadas do karitiana permitirem deslocamentos internos não é um contra-argumento para a proposta de nominalização, pois, como vimos acima, os sintagmas nominais tipicamente inertes seriam, na realidade, as palavras formadas no léxico através do processo de derivação, como as nominalizações lexicais do turco em (79-80).

O movimento interno com a anáfora ta- pode ser capturado através do deslocamento do sintagma nominal para uma posição de adjunto de qualquer posição abaixo de AspP.27 Repetimos o exemplo relevante em (83) por conveniência:

(83) Karitiana
Yn Ø-naka-kot-Ø tai-gooj Joãoi ti-hãraxa
eu 3-decl-estilhaçar-nfut 3anaf-canoa João inv-consertar
‘Eu estilhacei a canoa delei que o Joãoi consertou.’

Na árvore sintática em (84), o sintagma nominal movido ta-gooj é indicado como um adjunto do sintagma evidencial. Segundo Vivanco (2018), esse movimento seria uma espécie de scrambling, um tipo de deslocamento de argumentos para fora do sintagma verbal que, no karitiana, estaria relacionado à presença do morfema ti- no verbo:

(84)

Assim, a estrutura nominalizada em (84) consegue acomodar movimentos internos de seus constituintes. É preciso pontuar, contudo, que estes movimentos são permitidos apenas se o alvo for uma posição interna. Movimentos de constituintes para fora da estrutura nominalizada não são permitidos por violarem a restrição de sintagmas nominais complexos em (72). Dessa forma, a proposta de nominalização em (71) é capaz de capturar o comportamento complexo das orações subordinadas com relação ao movimento, permitindo deslocamentos internos e bloqueando os externos.

Em suma, a proposta apresentada aqui consegue abarcar todos os comportamentos nominais e oracionais apresentados nas seções 2 e 3. Na próxima seção, discutiremos um último aspecto das subordinadas que tem sido apresentado como um diagnóstico de seu estatuto: a negação.

4.2. Negação em orações subordinadas

A negação foi arrolada por Rocha (2016) e Vivanco (2018) como um argumento para suas propostas para a subordinação — com conclusões opostas, no entanto. Karitiana possui dois elementos negativos: padni e -ki. Segundo Landin (1984) e Storto (1999), padni é a negação comumente utilizada em orações matrizes:

(85) Karitiana (Storto, 1999, p. 68)
I-so’ooto padni
3-ver neg
‘Ele/ela não viu.’

A negação -ki não pode funcionar como negação sentencial.28 Landin (1984) mostra que esse sufixo pode aparecer em sintagmas verbais e Storto (2007) o analisa como uma negação privativa, como -less no inglês:

(86) Karitiana (Landin, 1984, p. 13, adaptado)
Mẽm-ki
entrar-neg
‘Não entrar.’
(87) Karitiana (Storto, 2018, p. 229)
Kyry-dna-ki
fígado-adj-neg
‘Sem fígado.’

Em orações subordinadas, a negação sentencial padni não é permitida e apenas -ki pode ocorrer nestes ambientes (Landin, 1984; Storto, 2018; Vivanco e Bassa Vanrell, 2021):

(88) Karitiana (Vivanco e Bassa Vanrell, 2021, p. 6)
*João Ø-na-aka-t i-osedna-t [carro-ty Maria amy padni]-t
João 3-decl-cop-nfut nmz-feliz-con.cop carro-obl Maria comprar neg-advz ‘
‘(Pretendido) João ficou feliz quando a Maria não comprou o carro/antes da Maria comprar o carro.’
(89) Karitiana (Landin, 1984, p. 13, adaptado)
[A-pyt’y-ki tyki]-t y-taka-tar-i
2-comer-neg asp-advz 1-decl-ir-fut
‘Se você não comer, eu irei.’

Rocha (2016) considera a simples presença da negação em subordinadas um contra-argumento à ideia de que elas seriam construções nominalizadas, pois, segundo o autor, a negação deve operar sobre cláusulas. Além disso, outro argumento levantado por Rocha é o de que a negação privativa -ki não pode ocorrer com sintagmas nominais (Storto, 2017). O dado em (87), por exemplo, contém o sufixo adjetivizador -(d)na, o que mostraria a impossibilidade de -ki se afixar a bases nominais diretamente.

No entanto, existem outras questões igualmente problemáticas e que parecem demandar uma análise alternativa. Embora -ki não se afixe a bases nominais, ele também não é a negação prototipicamente oracional da língua. Este papel é cumprido pelo padni, que, como vimos em (88), não é permitido em subordinadas. Assim, Vivanco (2018) toma o caso do -ki como uma evidência da diferença entre orações matrizes e subordinadas (similar àquelas apresentadas na seção 2.1). A análise de Vivanco (2018), entretanto, não explica exatamente por que -ki está presente em subordinadas apesar de ser impossível com bases nominais. Afinal, como vimos na estrutura em (71), as orações subordinadas seriam em sua camada mais externa idênticas a sintagmas nominais.

Assim, a negação -ki não demonstra nem o estatuto nominal nem oracional das subordinadas. Em outras palavras, talvez -ki não seja um bom critério para classificarmos essas construções. Um estudo mais aprofundado da negação -ki poderá, talvez, iluminar a razão pela qual este sufixo pode estar presente em orações encaixadas.

5. Considerações finais

O objetivo deste artigo era apresentar uma estrutura para as orações subordinadas do karitiana que explicasse seu comportamento complexo. Por um lado, essas construções se assemelham a sintagmas nominais; por outro, elas exibem características similares a orações matrizes. A partir de propostas dentro da sintaxe gerativa, propusemos que as subordinadas do karitiana seriam construções nominalizadas contendo as projeções nP, EvidP, AspP, VoiceP e vP. Esta arquitetura sintática, que combina núcleos de natureza nominal e verbal/oracional, captaria o comportamento ambíguo destas construções.

Abreviaturas

1pl.incl primeira pessoa do plural inclusiva; 1pl.excl primeira pessoa do plural exclusiva; 1s primeira pessoa do singular; 2s segunda pessoa do singular; 3 terceira pessoa; 3anaf terceira pessoa anafórica; acc acusativo; adj adjetivizador; advz adverbializador; ass modo assertivo; asp aspecto; caus causativo; conc.cop concordância de cópula; cond condicional; cop cópula; cop.int cópula interrogativa; decl modo declarativo; deon deôntico; epen epêntese; evid.ind evidencial indireto; fut futuro; gen genitivo; imperf aspecto imperfectivo; imperf.prog aspecto imperfectivo progressivo; INF infinitivo; inv inversa; loc locativo; n nominalizador –a; neg negação; nfnom nominalização não factiva; nfut não futuro do modo declarativo; nfut.ass não futuro do modo assertivo; nmz nominalizador; obl oblíquo; pass passiva; perf aspecto perfectivo; pl plural; pst passado; r relacional; result resultativo ; vn nome verbal.

Notas

1 Este trabalho foi realizado com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), processos nº 2014/15141-1 e nº 2019/11661-4.

2 Outra diferença entre orações matrizes e subordinadas identificada por Storto (1999) é com relação à ordem de palavras. Orações matrizes exibem um efeito V2 (isto é, o verbo ocupa a segunda posição da sentença), enquanto as subordinadas são obrigatoriamente verbo-finais. Segundo a autora, isso se deve à disponibilidade do núcleo C (de complementizer) em orações matrizes, para o qual o verbo se moveria para adquirir afixos de tempo e concordância. No caso de subordinadas, este núcleo funcional não estaria presente.

3 Existe ainda a possibilidade de a marca de 1ª pessoa em (6) ser um possessivo, pois ela é homófona a prefixos possessivos:

i. Karitiana (Storto, 1999)
Y-haj
1s-irmão.mais.novo
‘meu irmão mais novo (ego masculino)’

4 Sobre o morfema condicional, veja também Storto (2002).

5 A presença de modo assertivo no verbo pyting em (13) não altera a valência verbal (veja Rocha, 2011).

6 A família Arikém, grupo linguístico Tupi ao qual o karitiana pertence, passou por uma mudança vocálica sistemática, na qual o [a] Tupi passa a [o] (Rodrigues, 1986; Storto e Baldi, 1994).

7 Storto (1999, et seq.) o denominou como vogal temática, enquanto autores como Everett (2006) e Rocha (2016) o glosam como parte da raiz verbal.

8 Os dados aqui são apenas de orações relativas. É preciso verificar se ele está restrito apenas a este tipo de orações ou se ele pode aparecer dentro de qualquer subordinada.

9 Não foi encontrada a glosa para o morfema -ref no trabalho citado.

10 Um contra argumento para essa análise do morfema -a é o fato dele aparecer em verbos flexionados também, como em pykyn na sentença abaixo:

ii. Karitiana
Ø-pyr-y-pykyn-a-n j̃onso
3-ass-epen-correr-n-nfut mulher
‘A mulher correu.”

Contudo, o morfema -a pode estar sendo reanalisado como parte da raiz. Como mostra Queixalós (2006), esse processo foi atestado em algumas línguas da família. Uma possível evidência para essa análise dos fatos no karitiana é de que, em verbos flexionados, há casos em que o -a não está presente:

iii. Karitiana (Storto, 1999)
Gokyp Ø-naka-hỹryj-Ø omenda
sol 3-decl-cantar-nfut meio-dia
‘O sol cantou ao meio-dia.”

11 Neste aspecto, Karitiana se alinha às línguas da família Tupi, para as quais o QU- movido parece ser a estratégia típica (Rodrigues, 1999).

12 Descreveremos aqui apenas a estratégia para o não futuro, que será relevante para os dados de subordinação. Para perguntas com QU- absolutivos no futuro, veja Storto (2008; 2010).

13 Isso fica mais claro ainda em perguntas com QU- no futuro, pois, nestes casos, o morfema -mon é suplantado pela cópula aka (veja Storto, 2008; 2010).

14 No caso da oração subordinada adverbial em (40), ela já ocupa a posição inicial da sentença em sua contraparte declarativa. Isso ocorre por karitiana ser uma língua V2, na qual advérbios frequentemente ocupam a posição pré-verbal (Storto, 1999).

15 Alguns falantes que aceitaram (42) a interpretaram como duas orações simples coordenadas, como ‘O que o João contou e a Karin quebrou?’.

16 Veja ainda que não é o caso de esse tipo de movimento ser universalmente proibido, pois essa mesma extração é permitida com advérbios:

iv. Karitiana
[Morã horot] i-amy pykyp-y-ty Karin?
qu como 3-comprar roupa-epen-obl Karin
‘[Como o que] a Karin comprou uma roupa?’
(Contexto: a Karin iria comprar uma roupa dentre várias opções de cores)

17 A variação de ordem é irrelevante aqui, pois ela está relacionada ao fato de subordinadas serem exclusivamente verbo-finais (veja nota 2).

18 Sobre o paradigma de pessoa em karitiana, veja Storto (2002).

19 Essa alomorfia é condicionada fonologicamente: no início de palavra, a nasal se oraliza (veja Storto, 1999) e se torna by-.

20 Como apontam Rijkhoff e Lier (2013), isso não é exclusivo da linguística: áreas do conhecimento como a biologia e a astronomia também enfrentam questões parecidas.

21 O infinitivo verbal do alemão também permite advérbios, como häufig no exemplo abaixo:

v. Alemão (Alexiadou et al., 2013, p. 28, adaptado)
[Häufig die Sterne Beobachten] macht Spass.
frequentemente as.acc estrelas observar.inf faz diversão
‘É divertido observar as estrelas frequentemente.’

22 Estes exemplos não apresentam glosas no trabalho original.

23 Os autores fazem uma distinção entre o aspecto exterior (outer aspect) e aspecto interior (inner aspect ou aktionsart). O primeiro estaria relacionado a distinções como perfectivo, imperfectivo, etc., enquanto o segundo seria o chamado ‘aspecto lexical’, que codifica informações do evento como estados, processos, accomplishments, achievements, etc.

24 Com exceção da estrutura proposta por Alexiadou et al. (2013) para o infinitivo verbal em espanhol, que teria uma projeção TP.

25 Espera-se também que a concordância esteja ausente, pois, em karitiana, Storto (1999) propõe que ela se localize no núcleo funcional C, que também estaria ausente.

26 A título de comparação, apresentamos abaixo as estruturas sintáticas para orações matrizes e sintagmas nominais:

vi. [CP C [EvidP [AspP [TP [VoiceP [vP Arg.ext. [v’ [VP Arg.int. V ] v ] ] Voice ] T ] Asp ] Evid ] ]
vii. [nP [ √raiz ] n ]

27 Storto (1999) propõe que esse um movimento tenha como alvo o especificador de AspP.

28 -ki só é gramatical em orações matrizes se padni estiver igualmente presente:

viii. Karitiana (Vivanco e Bassa Vanrell, 2021)
I-oky-ki padniJoão ombaky.
3-matar-neg neg João onça
‘João tem que matar a onça.’
(‘Não é possível que João não mate a onça.’)

Por esta razão, Vivanco e Bassa Vanrell (2021) propõem que -ki seja considerado um item de polaridade negativa (negative polarity item), tal como any no inglês.

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